Universidade Federal de Juiz de Fora
Da modernidade até aquilo que Lipovetsky e Serroy (2010) nomearam como hipermodernidade, o sistema de construção de imagens e recepção delas passaram por diferentes fases e evoluções, transformando radicalmente as relações individuais e interações sociais. Para Pierre Lévy (2010), a partir da multiplicação de dispositivos móveis e suas funções comunicativas a nível global, as relações sociais deslocaram-se de contextos locais de interação e foram rearranjadas em extensões indefinidas, baseadas em uma noção de espaço-tempo diferenciados. Essas novas conexões aglutinam indivíduos em afinidades de interesses e conhecimentos, propiciando um processo de cooperação e troca entre eles que independe de proximidades geográficas, mas que evidentemente constitui uma nova forma de organização social (Lévy, 2010:134).
Dessa nova interpretação de lugar, sem fronteiras geográficas e hiperconectado, emergem outras abordagens perceptivas sobre ser cidadão e de atuação sobre esses espaços e assuntos cada vez mais comuns. Percebemos, então, a emergência de formas de engajamento político que ultrapassam a prática do ativismo em partidos, sindicatos e movimentos sociais locais, assumindo também no ciberespaço e na utilização de novas mídias uma postura ativista, tomando tais sistemas como suporte para suas práticas. Na atualidade, notamos que os atos de ativismo e militância tem se apoiado em tecnologias cada vez mais avançadas, não apenas para usufruir dessa fácil e acessível forma de divulgação de informações, mas também explorando o potencial político de pressão e engajamento com a realidade pelo permeio de ambos espaços que mediam interações sociais e culturais atualmente: o virtual e o físico.
Nesse cenário, a tecnologia de realidade aumentada se destaca ao exigir a participação contínua de um interveniente, promovendo a interação entre objetos virtuais tridimensionais e usuários reais, interatuando em tempo-real no espaço. Para Gonçalves (2006), o uso de imagens atraentes e passíveis de interação e manipulação tem a função de mobilizar e despertar o interesse para esse gênero de iniciativas, criando um entusiasmo para o engajamento político, levantando questões e discutindo-as de forma crítica e lúdica ao mesmo tempo. Portanto, a arte tem papel fundamental nessas ações, uma vez que age como um fator de atração e reflexão para questões socioculturais relevantes (Gonçalves, 2006:12).
De acordo com Mark Skwarek (2017), artista multimídia que tem trabalhado na construção e articulação de atos de resistência em redes, a tecnologia de realidade aumentada ganhou notoriedade neste século na mediação de narrativas elaboradas permitindo que artistas usufruam da potência de visualização e comunicação digital para alcançar propósitos reflexivos e experiências estéticas contemporâneas. Segundo o autor, os primeiros ativistas a utilizarem-se desta tecnologia foram inspirados pelo trabalho de culture jammers e artistas de grafite dos anos 80, que apoiados em uma semiótica de guerrilha, colocavam em voga técnicas de anti-consumismo e anti-capitalismo a fim de romper ou subverter a cultura mainstream. Esses grupos criavam grosseiramente sobreposições e intervenções sem permissão de um estabelecimento, desafiando a noção do espaço público e privado ao serem aplicadas sobre muros, portas de instituições ou no logotipo de corporações (Skwarek, 2014: 17). Na realidade aumentada, entretanto, essas sobreposições ocorrem de forma virtual em ações interativas através da digitalização de um código Quick Response (QR) ou de reconhecimento de um objeto pré-codificado via câmera de celular, disparando elementos virtuais tridimensionais (frases, desenhos, vídeos e pichações) que aparecem sobrepostos ao mundo cotidiano através da tela do telefone. Enquanto visualiza elementos virtuais sendo sobrepostos à ‘realidade’, o usuário tem a possibilidade de registrar sua interação através da câmera fotográfica ou de um print screen disponibilizado em algumas aplicações. A etapa seguinte, apesar de não ser o único modo de conferir credibilidade a um movimento visto que a maioria dos aplicativos interativos computam o número de participantes e os identifica por localização, é a divulgação voluntária e em rede dos materiais visuais obtidos durante a interação. Talvez este seja o ponto crucial desses atos de ativismo coletivo uma vez que coloca maior agência e destaque nas mãos de pessoas comuns que se prontificam e se declararam como apoiadoras de um movimento coletivo, expondo suas identidades em uma espécie de fragmentação da cobertura midiática, além de ramificarem um ponto inicial de protesto para diferentes comunidades e pontos do globo de forma instantânea, o que de alguma forma aumentam o reconhecimento de lutas que tem se tornado cada vez mais universais.
Como um exemplo notável dessa nova forma de manifestar-se politicamente encontra-se o protesto Occupy Wall Street, organizado através de redes de internet em 2011 nos Estados Unidos, e que contou com a colaboração de artistas e programadores de todo o mundo para seu sucesso. Esse movimento teve estopim na cidade de Nova Iorque em um protesto que reivindicava o fim da desigualdade social e econômica, a corrupção e a grande influência de empresas sobre o governo, particularmente do setor de serviços e o financeiro. Os manifestantes não tiveram permissão para protestar em Wall Street, onde somente parte da calçada estava acessível ao público, sob constante vigilância da polícia. Foi a partir deste impedimento que ativistas de 82 países se organizaram para criar o movimento virtual sobre a hashtag #arOCCUPYWALLSTREET, visando que utilização de aplicativos de realidade aumentada levasse o protesto ao coração do distrito financeiro e desse voz aos manifestantes barrados (Fig.1)
Fig 1. AR Occupy Wall Street, em 2011. Imagens retiradas do site do evento.
Já num propósito de discussões de gênero e articulações feministas, The Whole Story Project propunha ocupações simbólicas dos espaços a partir da reformulação de imagens femininas, visando discutir a presença das mulheres na sociedade, inclusive na história, atuando num devir entre arte e ativismo. O projeto foi inspirado na campanha Monumental Women Campaign, que teve início em 2016 a partir de uma constatação que apenas 7,5% das 5193 estátuas espalhadas pela cidade de Nova York retratavam mulheres. Desde então este projeto passou a ser articulado por artistas com o objetivo de a arrecadar fundos para colocar as primeiras estátuas em homenagem à história das mulheres no Central Park de Nova York, que além de contribuírem para a maior representatividade feminina na sociedade, promoveria a conscientização sobre as contribuições das mulheres para a história compartilhada. Foi no início de 2017, durante as preparações para a maior marcha feminista já realizada no mundo, a Women’s March, que artistas multimídias se apropriaram do projeto físico para criarem um aplicativo de realidade aumentada que colocasse diferentes mulheres em monumentos públicos, relatando suas histórias de luta e transformações sobre a cidade. O aplicativo The Whole Story, embora virtual, pretendia fazer ondas no mundo físico, chamando a atenção para que mulheres comuns se inspirem com a história de outras grandes realizadoras, empoderando-as politicamente em sua comunidade, além de permitir ao público recuperar a narrativa histórica das grandes cidades. (Fig.2)
Fig. 2. RA em discursos de empoderamento feminino (2017). Imagem retirada do site do projeto.
Diante desses exemplos, e apoiados nos estudos de Ricardo Rosas (2003), podemos dizer que tais movimentos tratam-se de novas formas de ativismo uma vez que se articulam como modos de resistências temporárias e nômades, baseadas em ações coletivas de intervenção em espaços públicos que se fundamentam pelas redes virtuais ou no uso de mídias diversas (Rosas, 2003). De um modo pragmático, esses ativismos em Realidade Aumentada passam a abranger diversas províncias de significado e experimentar universos múltiplos em forma de manifestações, evidenciando que os métodos do passado podem estar se tornando menos efetivos e se faz necessário a reestruturação de um modelo que condiz com uma realidade hipermoderna.
Sobre antigos modelos de manifestação política e suas funcionalidades, o coletivo americano Critical Art Ensemble (1996) argumenta sobre a ocupação de espaços públicos em protesto da atualidade. Para o grupo, embora alguns dos monumentos do poder permaneçam fixos, ostensivamente presentes em locais estáveis, o poder já não reside nesses locais, já que a ordem e o controle agora se movem livremente. O que é proposto em seus manifestos é a apropriação de algo que tenha um valor comum na atualidade, tanto para as instituições de poder as quais se combate quanto para a sociedade de forma geral.
Nesse sentido, a ocupação e uso das novas mídias e do espaço político que elas fornecem mostram-se como uma abordagem diferenciada sobre as competências da comunicação, flexibilizando seus usos comuns e trazendo a reflexão sobre as potencialidade de um trabalho colaborativo. Dentro do contexto cultural-midiático existente, isso seria uma forma de combater um sistema através de seus próprios meios, sendo, portanto, uma estratégia válida de enfrentamento, e mostrando um caminho possível para inversões temporárias no fluxo do poder.
Ao tentar compreender as novas formas de exercício político na contemporaneidade, esbarramos com uma grande gama de ações que têm sido realizadas através de tecnologia de Realidade Aumentada. A sobreposição de camadas virtuais e moldáveis às referências visuais do mundo físico tem sido usada como forma de atração e engajamento para atos de ativismos na tentativa de discutir sistemas políticos, econômicos e ambientais da forma mais atual possível. Essas novas formas de envolvimento político coletivo são reflexos de tempos onde as mídias móveis e a hiperconectividade reoganizaram nossas relações com o mundo, motivando indivíduos a ingressarem em novas experiências estéticas e reflexões singulares através da fusão entre arte, tecnologia e política.
Critical Art Ensemble
(1996), “Electronic civil desobedience and other unpopular ideas”. Disponível em:
http://critical-art.net/books/ecd/
(acesso em 13 janeiro de 2018).
Gonçalvez, F.
(2006). Resistência nômade: arte, colaboração e novas formas de ativismo na Rede. Rio de Janeiro: Revista Compós, p. 85-90.
Lemos, A.
(2006). Ciberespaço e tecnologias móveis: processos de territorialização e desterritorialização na cibercultura. Porto Alegre: Sulina.
Lèvy, P.
(2010). Ciberespaço. São Paulo: Editora 34,
p.133-134.
Lipovetsky, G., e Serroy, J.
(2010). O ecrã global: cultura midiática e cinema na era hipermoderna. Lisboa: Edições 70.
Rosas, R.
(2003). Que venha a mídia tática. In: Rizoma.net. Disponível em:
http://www.rizoma.net/interna.php
?id=174&secao=intervencao/ (
Acesso 17 de dezembro de 2017).
Skwarek, M.
(2017). Augmented reality activism. In Augmented Reality Art. Berlim:
Springer, p. 3-29.
The Whole Story Project
(2017). Website oficial. Disponível em:
https://thewholestoryproject.com
(Acesso em: 10 nov. 2017).
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